quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Um Toque de Voyeurismo: o diário íntimo de Couto de Magalhães (1880-1887) de Márcio Couto Henrique


Negociando em Londres ações da companhia ferroviária Minas-Rio no final do século XIX, um brasileiro exemplar começava a escrever seu diário íntimo. Rico, herói da Guerra do Paraguai, presidente de várias províncias do Império, erudito, por muitos con-siderado iniciador da etnologia brasileira, era o general Couto de Magalhães, que, do alto de seus quarenta e poucos anos, iniciava uma “peregrinação ao mundo interior”.
Nas cuidadosas mãos de Márcio Couto Henrique, o diário íntimo de Couto de Magalhães serve como espécie de fresta – estreita, é verdade, mas estrategicamente posicionada. Através dela, o autor deste livro abre uma nova perspectiva sobre a vida privada das elites brasileiras da segunda metade do século XIX, particularmente a de seus “grandes homens”. Os contornos da cena, que o diário oferece apenas obliquamente, são completados pelo antropólogo com informações advindas de diferentes fontes sobre o período e o herói. Assim, observam-se os desvãos do modelo da “família higiênica burguesa” ou, ao menos, o quanto a trajetória de certos homens da elite oitocentista podia se distanciar dos valores que médicos e outros empresários morais procuravam tão diligentemente disseminar entre nós. Aos poucos, o imponente retrato do militar confeccionado por Almeida Júnior vai revelando outros matizes: solteirão convicto, que via no casamento uma forma de escravidão e cujos sonhos eram povoados de fantasias homossexuais, pai de filhos naturais, contaminado pela sífilis e, sobretudo, hipocondríaco.
Dores, pruridos, gases, sensações, tumores, temperaturas, depressões, cólicas, inflamações, cismas, nevralgias, atrofias, ansiedades, terrores vagos, dormências, irritações, humores, sonhos eróticos – cuidadosamente redigidos em nheengatu ou em código indecifrável –, tudo se registra nessa espécie de diário anamnésico. Baseado em minuciosas notas e nas inúmeras terapias que essas fraquezas ensejavam, Márcio Couto Henrique explora como os homens da segunda metade do século XIX relacionavam-se consigo mesmos e seus corpos e como, por debaixo de seus muitos galões e medalhas, é possível perceber sua singular humanidade.

Sérgio Carrara
Professor do Instituto de
Medicina Social da UERJ

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