quarta-feira, 16 de setembro de 2009

As marcas da escravidão: O negro e o discurso oitocentista no Brasil e nos Estados Unidos de Heloisa Toller




       As sociedades do Novo Mundo e os dominadores europeus fundamentaram a empresa colonial em ideologias raciais autojustificadoras tão eficientes que até hoje reverberam na sociedade, na política, nas atitudes, no imaginário.
       Este livro busca recompor a imagem (e a autoimagem) do negro no Brasil e nos Estados Unidos oitocentistas a partir de significativas mostras de discursos religiosos, políticos e literários, sendo os últimos especialmente férteis, valendo-se de uma pesquisa interdisciplinar que recorre às ciências sociais e a outros saberes sem se submeter a nenhum deles. O corpus reunido de discursos permite-nos vislumbrar as complexas relações inter-raciais do universo oitocentista, “cria vastos painéis sociais, em suas nuances e modulações”.
       Sobre isso Heloisa Toller Gomes se debruça: seu trabalho é vasculhar a literatura oitocentista em busca de pistas que ajudem a caracterizar o discurso que se formou sobre o negro. Apoiada pelas teorias de Michel Foucault (análise das formações discursivas) e Jacques Derrida (literatura na intertextualidade), a autora disseca conceitos ideológicos que perpassaram séculos e vai além: vasculha, disseca, mas também indaga: como se distanciar da tragédia da escravidão para analisá-la? Como se caracteriza o discurso que se formou sobre o negro? E como se formou a alteridade do negro? O ponto de partida é a própria literatura, que, entre questões antigas e atuais, ilumina os códigos, os comportamentos, critica a ordem vigente e as relações de poder.
       A autora, ciente da complexa relação entre poder e saber, retira o negro do lugar do outro determinado pelo mesmo, nele reconhecendo um estatuto próprio de alteridade. No caminho, trata do que é explícito e do que é velado, dos mecanismos de controle que fatalmente engendraram “efeitos de verdade”. Seu livro é resultado do esforço de captar vozes perdidas no tempo, e o mérito maior talvez seja ter conseguido fazer-nos ouvir o que se calou.
       Ao leitor que percorrerá as páginas deste livro um mosaico se apresenta, além da possibilidade de compreender quanto do passado ainda permanece nos dias de hoje, mesmo que muitas coisas sejam encaradas como findas. As marcas da escravidão, de Heloisa Toller Gomes, é acima de tudo um convite à reflexão sobre valores e papéis forjados e reafirmados pela sociedade em relação ao negro. 
  
       Ricardo Freitas
Bacharel em letras - UERJ

Um Toque de Voyeurismo: o diário íntimo de Couto de Magalhães (1880-1887) de Márcio Couto Henrique


Negociando em Londres ações da companhia ferroviária Minas-Rio no final do século XIX, um brasileiro exemplar começava a escrever seu diário íntimo. Rico, herói da Guerra do Paraguai, presidente de várias províncias do Império, erudito, por muitos con-siderado iniciador da etnologia brasileira, era o general Couto de Magalhães, que, do alto de seus quarenta e poucos anos, iniciava uma “peregrinação ao mundo interior”.
Nas cuidadosas mãos de Márcio Couto Henrique, o diário íntimo de Couto de Magalhães serve como espécie de fresta – estreita, é verdade, mas estrategicamente posicionada. Através dela, o autor deste livro abre uma nova perspectiva sobre a vida privada das elites brasileiras da segunda metade do século XIX, particularmente a de seus “grandes homens”. Os contornos da cena, que o diário oferece apenas obliquamente, são completados pelo antropólogo com informações advindas de diferentes fontes sobre o período e o herói. Assim, observam-se os desvãos do modelo da “família higiênica burguesa” ou, ao menos, o quanto a trajetória de certos homens da elite oitocentista podia se distanciar dos valores que médicos e outros empresários morais procuravam tão diligentemente disseminar entre nós. Aos poucos, o imponente retrato do militar confeccionado por Almeida Júnior vai revelando outros matizes: solteirão convicto, que via no casamento uma forma de escravidão e cujos sonhos eram povoados de fantasias homossexuais, pai de filhos naturais, contaminado pela sífilis e, sobretudo, hipocondríaco.
Dores, pruridos, gases, sensações, tumores, temperaturas, depressões, cólicas, inflamações, cismas, nevralgias, atrofias, ansiedades, terrores vagos, dormências, irritações, humores, sonhos eróticos – cuidadosamente redigidos em nheengatu ou em código indecifrável –, tudo se registra nessa espécie de diário anamnésico. Baseado em minuciosas notas e nas inúmeras terapias que essas fraquezas ensejavam, Márcio Couto Henrique explora como os homens da segunda metade do século XIX relacionavam-se consigo mesmos e seus corpos e como, por debaixo de seus muitos galões e medalhas, é possível perceber sua singular humanidade.

Sérgio Carrara
Professor do Instituto de
Medicina Social da UERJ

TEATRO E DANÇA COMO EXPERIÊNCIA COMUNITÁRIA


         Teatro e dança como experiência comunitária, organizado por Victor Hugo Pereira, Zeca Ligiéro e Narciso Telles, é um presente para aqueles que se preocupam com o futuro da arte brasileira e principalmente com o teatro e a dança. Esse livro é fruto de intensas pesquisas e dedicação de professores, universitários e artistas engajados em uma arte libertária no âmbito do indivíduo e de seu grupo social.
          Seu diferencial é tratar da produção cênica que não é pautada pelas regras do mercado do espetáculo no Brasil, aquela que já foi nomeada de “periférica”, “extra” ou “marginal”, mas que agora merece seu espaço mesmo que não tenha as benesses do poder ou polpudos patrocínios.
         A questão social brasileira está completamente associada à evolução da dança e do teatro, e a comunidade também é importante nesse processo. Entrevistas feitas com grandes produtores dessa arte social, como Guti Fraga do grupo Nós do Morro, para ressaltar seu histórico de vida e suas práticas sociais tão importantes, também fazem parte dessa publicação.
        Há quem diga que no Brasil não existe vontade de mudar a realidade daqueles que mais necessitam. E o fenômeno do projeto social é prova de que a realidade pode realmente ser transformada e o acesso à arte ser de fato democrático, com o objetivo de concretizar sonhos e experimentar uma nova alternativa de vida. A dança e o teatro estão entrelaçados na proposta do livro, como reitera Carmen Luz, responsável pela Companhia Étnica de Dança e Teatro: “Trabalhamos, contemplamos, justamente isso.
A ação não é só formar bailarinos, atores, artistas, mas, antes, instruir essas pessoas”.
       Essa obra tem grande valor para o mundo acadêmico e artístico, pois é uma das poucas publicações sobre o papel da arte comunitária no cenário atual, ressaltando o quanto é importante para o desenvolvimento educacional do País. Apresenta ainda trabalhos cariocas surpreendentes, como os dos grupos Armazém das Ideias e Ações Comunitárias (AIACOM), Nós do Morro, Companhia Étnica de Dança e Teatro e o Tá Na Rua.
     O livro não é um guia ou um manual de como executar o teatro e a dança em perspectiva comunitária, mas um difusor de discussões profundas sobre o relacionamento entre o homem e a sociedade e as possibilidades que ele encontra para sobreviver, participar e ser reconhecido. Nas palavras dos organizadores, “oferece uma série de reflexões sobre o fazer a arte com e para pessoas que não estão no circuito pequeno-burguês das casas de espetáculo e que ainda sonham com o teatro e a dança como processos alquímicos de transformação de quem os faz e de quem assiste”. Mais uma etapa da realização dos sonhos e lutas.
Ana Carolina Ferreira de Almeida
Graduanda de Letras / UERJ

terça-feira, 15 de setembro de 2009

NOVOS PIERRÔS, VELHOS SALTIMBANCOS

o:smarttagtype name="PersonName" namespaceuri="urn:schemas-microsoft-com:office:smarttags">

Vera Lins é ensaísta e crítica literária, especialista nas relações entre literatura e artes plásticas. Seu livro aborda uma questão inédita no âmbito da discussão da existência de produção artística e literária moderna antes de 1922, tendo em vista a vivência de Gonzaga Duque como precursor da crítica de arte.
O livro trata da obra do supracitado crítico de artes plásticas que inaugurou uma visão de sobre artes no Brasil, escrevendo entre 1886 e 1911. Seu trabalho antecede o período considerado modernista; no entanto, mostra uma abertura para questões da cultura e da arte que possibilitam considerá-lo avant la lettre.
            Em Novos Pierrôs, Velhos Saltimbancos, faz-se uma leitura de toda a sua trajetória no contexto da virada do século XIX para o século XX, tentando entendê-la teoricamente no panorama do simbolismo brasileiro e europeu. Associam-se as interrogações nesse final de século dos simbolistas cariocas - grupo ao qual pertencia Gonzaga Duque -, com questões que suscitavam a modernidade.  A busca de outras linguagens, fora do racionalismo pragmático e do ego liberal, marca as explorações dos intelectuais finisseculares numa direção trágica.
A autora articula crítica, utopia, tragicidade, e repensa a noção de modernidade na história cultural brasileira em que vivemos hoje.

Ana Carolina Almeida
            Graduanda em Letras





quarta-feira, 9 de setembro de 2009

A GEOPOÉTICA DE EUCLIDES DA CUNHA


A geopoética de Euclides da Cunha, de Ronaldes de Melo e Souza, é uma visão totalmente nova sobre a obra euclidiana. Geopoética significa poética da terra. A expressão inédita corresponde à originalidade da ficção narrativa de Euclides da Cunha no contexto literário nacional e internacional. A novidade se fundamenta na interpenetração dinâmica do vigor da inspiração artística e do rigor científico da reflexão, decorrente do projeto euclidiano do consórcio da ciência e da arte. A observação sem imaginação não se legitima.




A tese da poética da terra é demonstrada através da correlação que Ronaldes estabelece entre a diversidade da terra e a heterogeneidade do narrador. A invenção euclidiana do narrador multiperspectivado promove o intercâmbio dialógico dos discursos poéticos, filosóficos e cientifícos. Para se haver com a multplicidade da potência telúrica, o narrador se desdobra em diversas máscaras narrativas. A singularidade do estilo narrativo euclidiano é depreendida por Ronaldes na interação dialética entre a consciência crítica da razão, exercida pelo narrador, e a experiência passional da imaginação, dramatizada nos refletores ou máscaras narrativas. Observador itinerante, pintor da natureza, encenador teatral, investigador dialético, refletor dramático e historiador irônico são denominações que Ronaldes de Melo e Souza propõe para viabilizar a compreensão de Os sertões. Plural desde o título, o livro solicita um enfoque transdisciplinar, capaz de suplantar os estudos norteados por um ponto de vista único, seja ele literário ou científico.
Não há nada fixo no universo euclidiano. Tudo se representa em formação e transformação. No prólogo dramático de Os sertões, a própria terra se manifesta em gestação, e a excessividade da força telúrica é o motivo indutor e condutor de sua obra inacabada sobre a selva amazônica. Um paraíso perdido se apresenta como ato cosmogônico em devir. Na ficção narrativa de Euclides da Cunha, demonstra Ronaldes, narrar significa invencionar a nação. Equacionando narração e nação, Euclides elabora uma obra comprometida com o projeto emancipatório do homem genuinamente brasileiro.
De acordo com a tese de Ronaldes, ao fazer da Terra, concebida como a vasta metamorfose de um organismo vivo, a protagonista de sua obra, Euclides supera a tradição do conhecimento ocidental-europeu, que se define na antiga separação do espírito e da natureza e na moderna dicotomia do sujeito e do objeto. A escola a que se filia Euclides da Cunha pertence a um pequeno número de pensadores e poetas que permaneceram à margem da cultura hegemônica do Ocidente. O grande mérito de A geopoética de Euclides da Cunha é inscrever a revolução euclidiana na cintilante linha da fantasia filosófica de Vico, do poetar pensante de Goethe, da imaginação transcendental de Fichte, da correlação da ciência e da arte de Alexander von Humboldt e da ironia romântica de Friedrich Schlegel. Somente depois das várias desconstruções da metafísica e do advento do novo espírito científico delineado por Gaston Bachelard, é que se prepara o consórcio da ciência e da arte, já advogado e realizado por Euclides da Cunha. Esta presciência e espantosa modernidade do escritor fluminense são exaustivamente argumentadas e explicitadas por Ronaldes de Melo e Souza em A geopoética de Euclides da Cunha.

Profª Maria Lucia Guimarães de Faria